No Brasil, o temor de que os Estados Unidos mantenham suas taxas altas por mais tempo diante da inflação doméstica e que as tensões no Oriente Médio tomem maiores proporções fizeram o dólar disparar a R$ 5,29 e as saídas de ações brasileiras ultrapassarem R$ 1 bilhão no ano.
Enquanto isso, no hemisfério Norte, ministros das finanças e banqueiros centrais alertaram que o atraso do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) é uma ameaça à flexibilização monetária em curso, durante as reuniões de Primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, realizadas em Washington DC, ao longo da semana passada.
As autoridades monetárias do Brasil e de outros países da América Latina indicaram que o ciclo de queda de juros pode ser menos intenso, bem como parar antes do previsto diante o quadro atual. Por sua vez, as questões domésticas passam a ter mais evidência, com um lembrete da necessidade de colocar o fiscal em ordem.
“Quando veio o susto em março, houve uma reversão drástica de expectativas e isso mudou muito os humores em relação a como vão se comportar as variáveis macroeconômicas mundo afora, nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, nos países emergentes e assim por diante”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em coletiva de imprensa do G20 Brasil, durante as reuniões de Primavera. “Essas placas tectônicas estão se acomodando e nós temos que ter um pouco de cautela para saber onde é que isso vai parar”, acrescentou.
Depois de bater R$ 5,29, o dólar à vista fechou a semana com alta de 1,53%, nos maiores níveis desde o fim de março do ano passado. Por sua vez, as ações brasileiras sofreram resgates de R$ 116 milhões na semana encerrada ontem, levando o acumulado no ano para mais de R$ 1 bilhão, de acordo com levantamento do Bank of America.
Sem investimento estrangeiro, a sangria acumulada sobe para R$ 3,2 bilhões. “Tivemos alguma saída de capital ultimamente”, disse o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, ontem, 19, em evento do FMI.
Segundo ele, houve uma grande reprecificação dos ativos globais causada, principalmente, pelo cenário externo. E, diante disso, houve uma perda na visibilidade que gera um custo para a política monetária. “A gente decidiu não mais usar o ‘forward guidance’ (sinalização futura), não porque a gente achava que o cenário tinha mudado substancialmente, mas simplesmente porque a visibilidade é menor”, disse Campos Neto, ao lado de Haddad, em coletiva de imprensa do G20 Brasil, durante as reuniões de Primavera.
As falas do banqueiro central, em especial a investidores durante evento na XP Investimentos, em Washington, fizeram o mercado mudar as expectativas para o futuro da Selic. Da Faria Lima a Wall Street, o corte de 0,5 ponto porcentual em maio subiu no telhado e a expectativa de uma redução de 0,25 porcentual para a próxima reunião ganhou força.
O economista e estrategista-chefe da Monte Bravo Corretora, Alexandre Mathias, preferiu não seguir a maioria. “Assim como o cenário mudou muito rápido para pior, pode mudar muito rápido para alguma coisa parecida com o que estava antes”, disse ele, em entrevista ao Broadcast, durante as reuniões de Primavera.
Para ele, o BC não abandonou o ‘forward guidance’, mas o mudou em meio à reversão no cenário global. Essa também é a leitura interna da autoridade monetária, segundo fonte ouvida pelo Broadcast. “O ‘forward guidance’ não foi abandonado, o cenário é que mudou e, por isso, tem de ser revisitado”, diz uma fonte próxima, na condição de anonimato.
O alerta para o efeito dos juros americanos elevados reforçou outro temor da comunidade internacional: a situação fiscal mundo afora e os dilemas domésticos, em especial, nas economias emergentes e em desenvolvimento. Desde a pandemia, os países abriram as torneiras de gastos e, agora, têm dificuldade de estancar a gastança.
A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, instou ministros de finanças a reconstruírem os colchões fiscais, diminuídos na esteira da pandemia, ao comentar a reunião do Comitê do Fundo Monetário Internacional (IMFC, na sigla em inglês). Realizados às margens dos encontros de Primavera, os debates terminaram sem um comunicado, devido a renovadas divergências em torno das guerras no Oriente Médio e na Ucrânia, a exemplo do que aconteceu com o G20 Brasil, realizado em São Paulo.
“Além da necessidade de terminar o trabalho sobre a inflação, concordamos com a importância crítica de reconstruir os colchões fiscais”, disse Georgieva, reforçando o coro em meio ao aumento do endividamento soberano.
Para o Brasil, o alerta do Fundo veio traduzido em piores projeções para o déficit fiscal neste e nos próximos anos. O FMI estima que o Brasil tenha déficit primário de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024 e de 0,3% em 2025. Apesar de não acreditar em um superávit até o fim do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o organismo melhorou as projeções para o endividamento do Brasil e passou a projetar um crescimento menor – e ainda assim para patamares que só perdem para países como o Egito e a Ucrânia.
Haddad ignorou a parte do déficit e celebrou o reconhecimento do FMI para a trajetória da dívida brasileira. Mas, aproveitou o palanque internacional para reforçar a sua preocupação com o quadro fiscal do País, na esteira de o governo anunciar metas menos ambiciosas para 2025 e 2026. “Se tem uma pessoa que nunca negou que nós temos um desafio fiscal, é esse que vos fala. Sei que existe, trabalho praticamente todo dia nisso. Não só isso, mas nisso também”, disse, em entrevista ao Broadcast e ao Valor Econômico, durante as reuniões de Primavera, em Washington DC.
Ele voltou a cobrar a responsabilidade do Congresso e do Executivo com a sustentabilidade das contas públicas. Haddad, inclusive, antecipou o seu retorno ao Brasil em um dia diante do risco de pautas-bomba no Congresso, a exemplo do impacto da desoneração da folha dos municípios na receita da Previdência, que pode ampliar ainda mais o desafio fiscal de sua gestão.
Para Mathias, da Monte Bravo Corretora, há um “difícil” e “complexo” jogo fiscal no Brasil, com ações no sentido apenas de elevar a receita, e não direcionadas ao corte de gastos. “É um jogo que não se resolve, então é muito complexo”, avalia. E, o essencial, diz, é gerir o déficit primário. “Comemorar o crescimento menor da dívida é comemorar alguma coisa que você não foi responsável. Quando você está querendo construir sua credibilidade, o mercado quer ver as coisas que você fez. E o que se controla no governo é receita e despesa”, afirma Mathias.
Apesar de ter suavizado as projeções para o crescimento da dívida, o FMI reforçou o alerta para a necessidade de o País avançar na agenda de reformas e se engajar em um esforço fiscal sustentado. “Gostaríamos de um esforço fiscal mais sustentado para colocar a dívida na trajetória descendente”, disse o diretor do Hemisfério Ocidental do FMI, Rodrigo Valdés, em entrevista exclusiva ao Broadcast. Mas, admite: “Não é uma corrida fácil”.
Reportagem publicada no Broadcast – Estadão